sexta-feira, 3 de março de 2017

MAIS UM


Eu tinha onze anos quando passei uma tarde inteira jogando futebol com um amigo no clube onde meu pai era vice-presidente e o avô dele diretor. Éramos duas crianças negras suadas e felizes. A tarde já caía quando passamos na frente de um dos salões onde acabara de acontecer uma festa de aniversário. Algumas pessoas guardavam o que havia sobrado. Foi quando uma mulher nos viu e pediu que esperássemos. Ela trouxe uma caixa cheia de doces e salgados e com uma cara de pena, piedade, sei lá, nos disse:
- Isso aqui é pra vocês dividirem com seus amiguinhos na rua.
Sim, ela achou que éramos meninos de rua pedindo comida. Fez uma boa ação e partiu com seu coração confortado por ter colaborado para a acabar com a fome de alguns pobres garotos.
Nesta mesma época acordei em um sábado com o corpo cheio de pintas vermelhas. Minha mãe, preocupada, me levou à emergência de um hospital perto de nossa casa. O médico mal me olhou e diagnosticou:
- É sarna.
Passou um sabonete especial para que eu pudesse tomar banho.
Não melhorei. Seguia com as pintas e coceira. Foi então que ela resolveu me levar a uma médica de sua confiança na segunda-feira. Diagnóstico:
- Alergia a determinados tipos de corantes.
Eu tinha bebido muita Fanta Uva, só isso. Eu não vivia em condições insalubres, sem higiene, saneamento básico, etc. Mas o médico de pronto assim pensou.
Dez anos se passaram e eu estava prestes a me formar em Jornalismo. Estudei em uma universidade particular. Era o único aluno de toda a faculdade com bolsa de Iniciação Científica paga pelo Estado. Participei de uma pesquisa por 3 anos. Minha monografia tratou sobre o mesmo tema. Ela era, naturalmente, maior e mais elaborada que as demais, já que eu estava debruçado sobre ela há mais tempo que os outros alunos.
Normal.
No dia da apresentação para a banca, uma professora veio até mim e me chamou no canto para conversar:
- Ernesto, levantaram uma suspeita sobre o seu trabalho. Tudo que está ali foi você que escreveu?
- Sim, professora. Por que? A senhora me conhece.
- Desconfiam que você tenha plagiado ou comprado.
- Nunca. Jamais.
Após a apresentação o professor que levantou a suspeita pediu desculpas e me parabenizou pelo trabalho. Tirei 10. Mas ainda estava puto com aquilo.
Eu não vivi em locais de vulnerabilidade social. Estive em espaços privilegiados, onde na grande maioria das vezes eu era o único(ou um dos poucos) negros presentes. Eu tive a oportunidade de estudar, ter plano de saúde, lazer, boa alimentação, estrutura familiar. Tive tudo, entendem? Mesmo assim, em todos os momentos não deixei de ser um homem negro brasileiro, o que significa carregar o estereótipo nas costas, o olhar de desconfiança alheio, a descrença da sociedade, o ódio até, a pena em alguns casos, o desprezo.
João Vítor, de 13 anos, foi morto com um soco, quando pedia comida na porta do Habib’s, em São Paulo. João Vítor era preto e pobre. Franzino.
Que ameaça trazia para um segurança muito maior do que ele?
Não foi só a agressão que matou João Vítor. Foi o estereótipo, a desconfiança, a descrença, o ódio, o desprezo. O racismo, compreende?
Ele é mais um a morrer apenas por ser preto e pobre.
Mais uma família mutilada.
Mais um para a estatística que poucos dão atenção.
Para morrer, basta nascer preto

quinta-feira, 2 de março de 2017

EMERSON E MAYKON



Tenho mania de conversa. Esse gosto “estranho” de entender um pouco mais o outro, na busca de entender a si próprio. Se me dão uma brecha, lá vou eu. Claro que entendo o limite da inconveniência, da chatice, da intromissão. Deixo fluir. Se rolar, rolou.

Foi dessa forma que conheci Emerson e Maykon em uma segunda-feira de carnaval carioca. Dois brasileiros bem pobres, com realidades bem próximas, com histórias que poderiam se cruzar.
De um lado, um pai. Do outro, um filho.

O pai Emerson, caminhava com um isopor quase vazio nas ruas da Lapa. Nos ofereceu algo para beber. Não queríamos nada naquele momento, mas ele nos falou seu bordão com as promoções e começamos a gritar igual, como se também estivéssemos vendendo. Oferecíamos a quem passasse e assim fomos fazendo companhia um ao outro em direção à Praça da Cruz Vermelha.

Emerson mora em Paracambi. Para chegar à Central do Brasil às 7 horas da manhã, tem que pegar o trem às 3h.

Está desempregado.

Deveu a pensão a pensão da filha por 3 meses. Está separado há 2 anos. Sofreu por ver a filha pedir dinheiro e não ter 10 centavos no bolso.

Passou 3 dias na Lapa durante o carnaval, dormindo sob os arcos, para vender o máximo que pudesse. Comprava no depósito de bebidas ali perto e revendia nas ruas movimentadas do bairro boêmio.

Viu outro vendedor, que também viveu na rua esses dias, levar uma facada numa tentativa de assalto enquanto dormia.

Emerson voltava com o rosto cansado, mas feliz por saber que pagaria a pensão da filha. Disse ter contado com a compreensão da ex-mulher, que assim como tantas mulheres neste país, guardam a responsabilidade pela criação e sustento dos filhos, muitas vezes sem qualquer participação paterna. Emerson não queria troféu algum. Sabia que era o mínimo a fazer. Iria diretamente para a casa delas para entregar todo o dinheiro que conseguiu naqueles dias.

Algumas horas depois, encontrei Maykon. Aparentava seus 16, 17 anos. Estava com os pais no Largo da Carioca. Não sei de onde vieram. Mas dormiram bem ali no berço da cidade do Rio também por 3 dias também. Vendiam cachorro quente. O dinheiro aliviaria a pobreza.

Maykon estava extenuado. Não queria mais dormir na rua. Aquela seria a última noite, disse ele. Voltariam para casa. Teriam algum descanso, talvez.

Ali estavam dois exemplos dentro de outros milhões de invisíveis.

Invisíveis pobres, sem instrução, sem oportunidades, desempregados e famintos. Ainda assim esperançosos de um dia melhor.

Não há como romantizar suas histórias. Eles são a realidade. São aquilo que não buscamos entender, ouvir, perceber. Vivem de sobreviver.

O carnaval deles é outro.


sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O QUE PASSOU





Abriu a mala em frente à cama e desistiu de colocar as roupas no armário. Ao menos por alguns instantes. Queria esvaziar a mente, se isso fosse possível. Deitou na cama com as pernas para fora do colchão e tirou os sapatos sem usar as mãos. Olhava para o teto, mas não era ali que estavam seus pensamentos. Respirou profundamente por duas vezes. Era como limpar os pulmões. O relógio marcava 17h. Bem ali, ao alcance da janela do hotel, estava a bela vista de uma praia carioca. Ali dentro, o clima gelado do ar condicionado. Do lado de fora, o calor do início de verão em final de tarde.

Era difícil para ele explicar como tinha chegado até ali. Trinta anos, uma profissão do qual não se orgulhava tanto, algumas crises emocionais ocasionais, um namoro que caminhava trôpego, contato precário com o pai e a preocupação com a saúde frágil da mãe, nenhum filho, a mesma cidade de sempre, alguns poucos e bons amigos e uma vontade inexplicável de se jogar do oitavo andar.
Pôs uma bermuda e desceu. No elevador evitou as conversas sobre o clima e temperatura com outro hóspede. O assunto tinha a capacidade de irritá-lo com facilidade. Odiava conversas sem desejo. Queria ouvir e ser ouvido de verdade. Palavras e pensamentos eram sagrados para ele.

Ficou sentado na areia por um tempo com o olhar perdido. Não era nostalgia, nem angústia, nem tristeza. Era o inexplicável. Por vezes tinha vontade de largar tudo e ir para o mato. Em outras, pensava em fazer outra faculdade, abrir um negócio ou escrever um livro. A inquietação crônica da geração Y.

- Boa tarde.

Ele despertou do sono de olhos abertos.

- Oi. Com licença. Vou dar um mergulho. Você pode olhar minha bolsa, por favor? – E saiu sem ouvir a resposta.

Ele apenas observou a ida dela. Assentiu com a cabeça e só. Gostou do sotaque. “Merrrgulho”, “dixculpa”.

- Obrigada, viu?
- Nada. Fica à vontade.
- Não é daqui, né?
- Curitiba.
- Ah tá. Tenho uma amiga lá.

Sentiu vergonha do corpo magro e desbotado. Sol apenas nas férias.
Ela colocou a canga ao lado dele e desandou a falar. Ele fez o exercício da escuta. Tinha pouco a dizer. Ela era mais solta.

- Vai fazer alguma coisa hoje?
- Nada programado.
- Tá hospedado aqui perto?
- Hotel Carioca. Conhece?
- Sei onde é. Tem um barzinho perto. Te encontro 21h, pode ser?

Ele nem saberia negar. Nunca tinha visto uma mulher tão decidida. Pensou na namorada. Não era intenção trair. Estavam flertando? Queria saber o que ela pensaria, mas sabia que não teria coragem de contar. Preferiu a omissão, não sabia se por culpa, defesa ou desejo.

Ana Maria era o nome dela. Ele só saberia quando já estavam sentados naquela mesa de bar tipicamente carioca. Ela tinha terminado o namoro de 3 anos havia apenas uma semana. Para ela, na verdade, a relação já tinha terminado 4 meses antes, quando o ex-namorado a chamou pelo nome de outra mulher quando faziam sexo. Ele tentou se desculpar, dizer que estava com problemas no trabalho, mas a partir dali ela sentiu que não fazia mais sentido. Não quis se aprofundar no que vinha acontecendo na vida dele, pois sabia que encontraria o que não queria. Preferiu deixar a relação terminar por si. Doeria, mas deixaria a sensação de que foi vivida até a última gota, até quando não tivesse mais a menor vontade de voltar, ligar, saber da vida ou enviar um cartão de “boas festas”. Contou parte dessa história para seu novo amigo, mas preferiu guardar para si as partes mais íntimas, aquelas que apenas ela entendia.

O que a levou a iniciar uma conversa com Renato na praia? Não sabia. Deu vontade. Foi lá e fez. Durante três anos quase não conversou com pessoas do sexo oposto, pois isso aguçava o ciúme do namorado. Foi se isolando. Sentia que aquilo era como uma retomada. 

Para ele seriam 4 dias longe de casa. Pouco mais de 800 km de distância da rotina.

- Vim participar do processo seletivo de uma empresa.
- E dura 4 dias?
- Na verdade, dois, mas resolvi me dar mais uns dias de folga.
-Mas tem a possibilidade de ser desqualificado antes, não?
-Obrigado pelo apoio.
- Mas não tem?
- Eu ficaria de qualquer forma. Tô precisando de férias.
- De quê? Você não tá desempregado?
- Da vida.
- Tem como? Me ensina?

Se despediram quando o garçom já jogava um balde com água e sabão no chão do bar. Eram duas e meia da manhã, estavam bêbados, porém firmes. Ele tinha que estar no prédio da construtora às 10h. Bateu na cama e acordou com a boca seca e os raios de sol invadindo o quarto pela fresta da cortina. Ainda faltavam duas horas até a entrevista que teria na empresa. Passou o dia entre dinâmicas de grupo e testes técnicos. Falou com a namorada no intervalo para o almoço. Pediu desculpas por não ter enviado mensagem antes de dormir. Não contou sobre a noite de cervejas e conversas com Ana Maria.

À noite, ela o levou para uma roda de samba que iria com os amigos. Apresentou Renato a eles. Ele estava um pouco sem graça no começo, mas sorriu sempre que necessário. Desajeitado, mas inexplicavelmente confiante, conversou com gente que nunca tinha visto, diferente da frieza dos seus conterrâneos.

Dançaram um samba ou dois juntos. Riram. Era como se aquilo acontecesse todas as semanas. Era uma fuga de si, sem precisar fugir.

Queriam se ver mais. Já era natural marcar a próxima saída.

-Por que não na minha casa amanhã? É sua despedida.
- Tinha que me lembrar isso?
- A gente bebe pra esquecer.

Subiu dois andares daquele prédio antigo em Botafogo. A porta já estava aberta.

- Pode entrar. Tô na cozinha.
Ele sentiu um cheiro bom vindo de lá. Seguiu.
- Eu não costumo receber muita gente aqui em casa. Principalmente alguém que não conheço. Mas sinta-se à vontade.
- A gente se conhece.
- Você é que pensa.
- Pensava mesmo, mas pelo visto...

Sentiu-se intimidado. Tinham sido horas e horas de conversa nos dias anteriores. “Como assim não se conheciam?” Era difícil para um homem entender que para elas, conhecer era muito mais profundo do que trocar algumas palavras e histórias em meio a cervejas e risadas.

Enviou mensagem para a namorada dizendo que já estava indo dormir. Já passava de meia-noite e nada além de conversas e um bom vinho. Mas ele preferia não contar.  

Quem ele era destoava de quem ele queria ser. Tentava expor a imagem do que projetava, mas em alguns momentos soava falso, frouxo. Tinha sido treinado para esconder suas fraquezas. Tornar-se adulto não tinha sido uma opção. O abandono do pai quando ele tinha apenas 12 anos fez com que sua visão da vida fosse diferente dos amigos. Ele já pensava em como sustentar uma casa, ajudar a mãe em tudo, a não dar mais trabalho a ela além do que já era inevitável. Talvez por isso tenha sentido que parte da sua adolescência tenha sido jogada fora. Por mais que a mãe tentasse tirar de suas costas as responsabilidades que atribuía a si, ele não conseguia se desvencilhar. Eram apenas ele e ela, pensava.

- Muito doido isso.
- Isso o que? – perguntou Ana Maria.
- Nós dois aqui.
- Dois insones que se encontraram para dividir um pouco a solidão. O que tem de anormal nisso?
- Pensando assim, nada.
- É bom saber que não precisa de sexo para ter uma boa relação com um homem.

Ele sabia que era verdade. Não precisou falar.

O celular começou a tocar. Era a namorada. Hesitou por um tempo. Atendeu pela insistência.
Ana Maria observou a transformação do rosto dele. Ele permanecia em silêncio. A boca levemente aberta. Os olhos perdidos e perto de soltar a primeira lágrima. Disse apenas “Tá. Vou dar um jeito. To indo já.”

- Minha...
- Mãe?
- É. Tá mal no CTI. Não se sabe se sobrevive mais um dia. – E chorou.

Parecia sonhar, mas apenas fechou os olhos por alguns segundos. Se viu ajoelhado e com os cotovelos apoiados no colchão. Renato, aos 11 anos, rezava da forma que tinha aprendido e acreditava, pois sabia que algo não ia bem. Sua casa não era a mesma. Mesmo que disfarçassem, os pais não conseguiam esconder o fim. Havia uma energia diferente no ar, que ele não sabia explicar. Só queria que sua vida voltasse a ser como antes. Mas como era? Era diferente. Mas como?

Era um escravo das lembranças.

Deram um abraço tão íntimo quanto nunca tinham sentido. Era um encontro necessário, sentiam. Era uma despedida necessária, sabiam. Distantes seriam amigos, talvez.

A mãe morreu três dias depois. O namoro dele acabou três meses depois.

Ele não conseguiu o emprego. Descobriu que seria mais feliz (e foi) abrindo um sebo de livros e vinis.

Ana Maria e Renato trocaram poucas palavras por whatsapp depois disso. Nada mais.

O que foram, sem qualquer definição humana, ficou cristalizado no tempo.




Ernesto Xavier


terça-feira, 22 de dezembro de 2015

CONFRATERNIZAÇÃO






Fim de ano e os funcionários resolviam se encontrar para a tradicional confraternização. Não era nada muito elaborado. Normalmente Arnaldo, o cara do almoxarifado e sambista de plantão, indicava um bar na cidade onde ele e seu grupo de samba-de-raiz iriam tocar e lá se fazia a reunião. Passavam o ano trocando apenas formalidades de trabalho. Afinidades existiam aqui e ali, mas nada que justificasse um convite para ser padrinho do filho que vai nascer, férias conjuntas em uma praia no nordeste ou para ser fiador no aluguel do apartamento novo. Eram todos colegas de trabalho e ponto. Em meio a intimidade forçada que se estabelecia nesses encontros eles até que se divertiam. Enquanto Arnaldo se esforçava no tantam, Maurício era o animador. Aquele cara que conta piadas, imita o chefe, que é claro, não está presente e puxa a primeira pessoa para dançar, criando uma pista de dança no meio do bar. Vanessa, a servente que faz o melhor café do Rio de Janeiro na opinião de Vera do arquivo, fumante desde os 15 anos e frequentadora assídua do café do corredor,  é a responsável por organizar o amigo-oculto: faz os papéis com os nomes e a lista de presentes desejados. Régis e Carlos Alberto da informática não eram muito animados, mas sempre compareciam. Os nerds do trabalho eram bebuns convictos. Sabiam toda a história da cerveja, com que comida combinavam cada tipo e se orgulhavam de contar cada detalhe. Sobre os outros não se tinha muito o que falar. Estagiários(e principalmente estagiárias) cheios de juventude, que destoavam do resto, se divertiam em seu mundinho particular, mas que no fim das contas animavam o clima. Tinham os tímidos, as recatas que depois de duas doses de caipirinha já se soltavam e cantavam cada refrão do Arlindo Cruz ´Madureiraaaaaaaa, lalaiá...´.

Tudo corria normal como sempre. Assim como nos anos anteriores, Camila do jurídico não estava. Fora casada por 7 anos com um executivo bem sucedido e ciumento. Não era de falar muito. Reservada por opção e convicção. Não sabíamos, mas a recém-separada descobrira o romance de 2 anos do ex-marido com o cunhado. Sim, cunhadO. Não sabia explicar se perder o marido para outro homem era melhor do que para uma piriguete mais nova, o que seria mais fácil de esperar.

Ao entrar no salão naquela noite fez-se um pequeno silêncio, que talvez não tenha sido percebido por todos, mas que invadiu o espaço, que mesmo entre bêbados, conversas animadas e batuques, fez presente como em filmes do velho oeste americano quando o bandido adentrava a porta do bar. O que ela estava fazendo ali?

Vera, a do arquivo, tratou logo de ir até ela oferecer um lugar a seu lado na mesa, como se aquela presença fosse a mais comum do recinto.

Era a mesma Camila de todos os dias, ao passo que era outra. De cabelos soltos, uma roupa que marcava as curvas até então desconhecidas de seu corpo, de lentes de contato, ao contrário do habitual óculos, maquiagem e um sorriso que podia animar qualquer velório.

Acompanhei sua trajetória em câmera lenta até a mesa. Eu estava no balcão do bar pegando um chopp e meio que sem pensar pedi mais um para o barman. Voltei para a mesa com os dois chopps na mão.

O que eu estava fazendo? Nunca tinha trocado mais do que frases feitas com ela. Era o macho alfa que despertava tardiamente dentro de mim?
-Que bom você aqui, aceita?
-Obrigado! Verdade, né? Nunca apareci...resolvi mudar isso.
-Nunca é tarde. Seja bem-vinda! Um brinde?
-Claro! À quê?

Pensei em fazer a brincadeira infame da maldição dos 7 anos de abstinência para os que não brindam, mas achei exagerado para o momento.

-Aos novos laços! Que eles sejam ainda mais fortes no próximo ano!
-A vida nova! - disse ela em tom de libertação de mulher reprimida.
O papo se estendeu pela noite adentro. Muitos chopps se passaram, Vera, a do arquivo, se sentiu isolada por este casal que agora conversava com entusiasmo e foi ter com Vanessa, sua companheira do café. Era estranho como alguém tão interessante estava próxima a mim todos os dias, porém escondida em seu véu de invisibilidade.
Duas da manhã, os garçons já guardavam as cadeiras, indicando que deveríamos sair.
-Vamos tomar uma saideira aqui perto? - disse ela.
-Será que tem algum lugar aberto ainda?
-Na rua aqui do lado tem um bar que só fecha quando o último cliente pede a conta.
-Como você sabe disso?
-Nem me pergunte.

Estávamos bêbados em um estágio avançado, daquele em que falamos tocando um no outro, sempre com os rostos próximos e os olhos de ressaca que dariam inveja a Capitu. Tomamos a saideira.

-Vim de táxi e você?
-Também. Mora aonde?
-Tijuca.
-Andaraí. Quer rachar um táxi? É caminho...
Dentro do carro, em um movimento natural, começamos a nos beijar. O taxista provavelmente desfrutava de uma vista privilegiada, onde parecíamos dois adolescentes afoitos.
-Tijuca. - disse o motorista.
- Deu quanto?
- 25 reais.
-Deixa que eu pago.
Saquei a carteira, paguei a corrida e saltei do carro junto com ela. O Andaraí ficaria para outra hora.
- Quer subir?
- Quero.
- Eu to um pouco enferrujada pra essas coisas. Nem lembro quando foi que outro homem entrou na minha casa.

Respeitamos o elevador que tinha câmeras e entramos no apartamento já tirando a roupa. A madrugada se transformou em manhã e jazimos exaustos sobre a cama em gozo.
Meio-dia e acordei com a luz que invadia a janela do quarto. Ela não estava. A boca seca e a cabeça latejando me lembravam de cada chopp da noite anterior. Isso não me importava muito dentro daquelas circunstâncias. E ela? Estaria na cozinha preparando um café-da-manhã na cama? Levantei, saí do quarto e a procurei na cozinha. Incrível como os apartamentos antigos da Tijuca são enormes. Nem sinal dela em qualquer canto da casa. Na cozinha um papel branco sobre a mesa de madeira:


"Não sei bem como chegamos até aqui... Bebi demais, saí de mim. Para evitar algum constrangimento, fui à rua fazer compras e para te dar tempo de sair sem despedidas.
Peço desculpas se fiz algo de errado. Seja lá o que for, foi um engano.
Ass. Camila"

Na segunda-feira lá estava ela de coque, óculos, saia comportada e blusa fechada.
No café veio até mim e percebendo que estávamos a sós, perguntou:
- Aconteceu alguma coisa?
- Não, você só deu abrigo a um pobre bêbado.
Terminamos o café em silêncio. Cada um foi para a sua baia e nunca mais se tocou no assunto.


quinta-feira, 5 de novembro de 2015

DESAJUSTADO



Você passa a infância ouvindo que seu cabelo é feio,

Não vê ninguém parecido nos lugares de destaque,

Quando vê, é bandido,

Ou jogador de futebol, mas você não joga bola,

Ou pagodeiro, mas não sabe sambar.

Não é escolhido rei do baile da escola.

Ganha prêmio de simpatia. Sabe que é consolação. Você se esforçou para ser engraçado e simpático para ter espaço e chamar atenção.

Você briga com o próprio cabelo. Alisa, corta curto.

Você ressalta seus traços mais “finos” para se aproximar da paquita (sempre) loira, do herói do filme, do apresentador de tv, do presidente, galã de comercial de margarina, de todas as referências que te apresentaram como boas.

Depois disso tudo, cresce e diz a todos que tem orgulho de ser quem é.

A chave vira, pois algo dentro de você não encaixa.

Se aceitar é mais do que um ato de coragem, é uma postura política.


127 ANOS




As grades das senzalas foram abertas há 127 anos. Os senhores de engenho ainda consideram que estamos lá dentro e nos tratam como se tudo fosse igual. 

Sou filho dos sobreviventes que atravessaram o Atlântico até aqui em porões fétidos. Sou filho de quem apanhou, de quem teve que fugir para não morrer. Sou filho de quem foi jogado à própria sorte após quatro séculos de servidão, na miséria, analfabetos, sem teto, sem terra. Somos sobreviventes porque não há o que possa nos matar. Mesmo na morte carnal permanecemos vivos por aí, pairando em cada canto para lembrar-lhes que o negro é a origem, a luz e a força que gerou isso que hoje chamamos de ser humano. 

Fomos trazidos para o país de mentalidade mais atrasada no mundo. Último local a por fim ao regime escravocrata. Último. Apenas 127 anos se passaram. O Brasil é racista pois não admite que acabou.
Os insultos à Taís Araújo são os mesmos de todos os dias e ainda me causam revolta. O que atingiu Taís, atinge João, Sebastião, Maria, Priscila, Dandara, Francisca, Marcelo, todos negros. Taís Araújo é a representação de que precisamos permanecer firmes nesta luta. Agradeço e admiro a coragem dela em levantar a bandeira e não esmorecer. 


Quem se cala dá voz aos racistas. 


A senzala não é minha casa, você queira ou não. Não foi e nunca será.

JOUT JOUT





Caros representantes do "Orgulho de ser hétero", vocês não me representam, ok?
A tentativa ridícula de retirar páginas feministas do ar é uma atitude covarde. Covarde como o assédio que vocês fazem diariamente a mulheres e meninas todos os dias. Covarde como se esconder na tela do notebook para difamar e ameaçar. Covarde como seus representantes políticos, que se valem da maioria masculina na Câmara para aprovar pautas contra direitos adquiridos das mulheres. 
Para você que se acha tão poderoso por ter nascido com um órgão genital masculino entre as pernas e por isso crê ser superior, apenas uma informação:
Você NÃO é homem. Nem ser humano posso considerar. 
O que é seu está guardado.
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