O alarme do celular tocou alto e o som invadiu todo o
quarto com aquela música da Marisa Monte: “Ainda bem que agora eu encontrei
você...”. A melodia que fora uma de suas prediletas virou pesadelo. Ela agora faz todos os dias uma associação com o momento em que deve começar a
se preocupar com o trabalho, o trânsito, a dieta... Nenhuma música resiste quando vira ringtone. Desligou o despertador o
mais rápido que pôde depois de tatear por alguns segundos intermináveis a mesa
de cabeceira, derrubar o celular no chão e achá-lo ao lado das Havaianas
embaixo da cama. Processo que era quase um ritual. Após um minuto de preguiça,
deitada, sua consciência foi ficando ativa novamente.
- Hoje é sábado!
Havia se esquecido de desligar o despertador na noite
anterior. Uma alegria subiu pelo seu corpo, como na infância quando levantava
para ir à escola e a mãe a avisava de que era feriado e ela poderia dormir mais
um pouco. Pequenos prazeres nunca perdem a validade.
O celular toca novamente. Mais Marisa Monte. Ela vê a
foto e o nome do namorado na tela. A música chega quase ao fim e ela não
atende. Caixa postal. Torna a tocar.
- Alô, Ana? Te acordei?
-Não. Já tava acordada há um tempo.
-Te conheço. Com essa voz...
-Fala logo o que você quer, Felipe.
-Desculpa. To ligando pra falar que o vôo vai atrasar
meia-hora. Devo chegar 10h30 mais ou menos.
-Putz! Esqueci que você chegava hoje.
-Eu posso pegar um táxi.
-Não precisa. Eu te pego lá.
- Até daqui a pouco. Obrigado. Te amo.
Aquele “te amo” no fim da frase foi como uma facada no
peito. Ela chegou a pensar em responder “também te amo”, mas para ela aquilo
seria ainda pior. Ela não mentiria para ele, mas para ela. Não tinha certeza
sobre o que sentia àquele momento. Ainda amava? Preferiu desligar sem dizer
nada.
Tudo começou com uma mensagem suspeita que ela viu no
celular dele. Culpou-se por invadir a privacidade do namorado, lendo suas
mensagens de texto, vendo quem tinha ligado. Porém uma desconfiança que surgiu
sem motivos aparentes a fez ir atrás. E como dizia a mãe: “Quem procura, acha”.
O sms deixava aberta a possibilidade de
interpretações. “Está preparado para amanhã? Estou ansiosa. Bjo, Ju.” Ele disse
que era uma colega de trabalho nova que estava preocupada com a reunião
importante que teriam no dia seguinte. Ela argumentou que uma colega de
trabalho não escrevia algo daquele tipo. Ele rebateu dizendo que a menina era
nova no escritório e que não tinha ainda a malícia que a maioria poderia ver em
suas palavras. A crise estava instaurada. Ele fez juras de amor eterno, disse
que nunca faria algo do tipo, que jamais a traiu, blá blá blá. Ela esbravejou,
teve nojo, chorou e no fim sentiu uma dormência que beirava a indiferença. Dois
dias depois ele viajaria a trabalho. Passaria três dias fora do Rio. “O
afastamento vai servir para acalmar os ânimos”, pensou ele. “Vai viajar com a
piranha. Aposto.”, pensou ela.
Assim como quando colocaram chinelo, short adidas e
camisetas com dizeres em inglês em índios, ela sentia uma estúpida invasão do
desconhecido, a perda irrevogável da inocência. Ela era perfeita para ele,
sabia que não existia no mundo alguém que o admirasse e tratasse tão bem como
ela. Por que ele a trairia? Ela estava feia, desleixada? Seria porque engordou
2 kg desde que começaram a namorar? A primeira reação foi se culpar. Pensava
que algo nela estava errado, perdendo a luz.
Nunca se sentiu preparada para algo. Ia de peito
aberto ao encontro da ponta da faca. Os ferimentos seriam como palavras
escritas em um diário aberto, expostas na internet. Entregou-se completamente a
ele, abriu as entranhas como nunca fizera antes. Agora perdia o chão, caindo em
um precipício sem fim. Três intermináveis dias em que evitou ao máximo lembrar
dele. Em vão. Permanecia atrás de respostas que talvez nunca viessem. Muitas
vezes não se busca a solução para os problemas e sim a identificação. Sentir-se
retratado pelo outro consola no sentido de que não se está sozinho nesse mundo.
É o conforto da compreensão verdadeira de outrem. Porém não tinha coragem de
contar a mais ninguém. Mesmo sem a certeza absoluta, algo lhe dizia que era um
fato.
Buscou Felipe no aeroporto. O caminho até a casa dele
foi feito praticamente em silêncio, interrompido apenas por uma sucessão de
xingamentos proferidos contra um motorista de ônibus que deu uma fechada
criminosa nela.
Entrar no apartamento dele foi praticamente
automático.
Felipe a beijou, ela aceitou, porém logo em seguida o
afastou bruscamente. Não conseguiria seguir em frente sem esgotar tudo o que
queria dizer e ouvir.
Ela expôs mágoas que remetiam há 3 anos passados. Ele
reclamou da forma displicente com que ela tratava a carreira dele. Ela rebateu
dizendo que depois de tanto tempo ainda não se sentia à vontade com a família
dele e ele era o culpado. Ele alfinetou com insinuações de que o ex-namorado
dela se fazia de amigo e só ficava à espera de uma oportunidade. Ela disse que
ele não se preocupava mais com as preliminares. Ele disse que ela também. Ela
confessou que sentia falta do carinho dele quando terminavam de transar. Ele
silenciou. Ela deixou o corpo cair no sofá em um movimento de puro cansaço
emocional. Ele um homem de 35 anos. Ela 2 anos mais nova. Ambos exaustos de términos,
começos, solteirices, novos planos, frustrações e ciclos que se repetiam
infinitamente. Resquícios naturais deixados pela juventude.
Ele estava chorando. Ela tinha visto isso acontecer
apenas uma vez. Levantou-se e foi abraçá-lo.
Só é crise quando ainda existe amor. O resto é
desesperança.
Ernesto Xavier
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