Ele estava diante do gatilho. Sentia
o cano frio tocar sua têmpora e o homem a gritar:
- Agora diz quem é o policial aqui?
Você não queria um policial?
Ficou ali deitado um instante,
arquejante, avaliando se ainda estava vivo.
O homem falava com hálito de álcool
bem próximo ao seu rosto, que raspava o chão. Colocava alguma espécie de
documento diante de seus olhos, mas ele não conseguia enxergar nada. Só pensava
“minha mãe não pode ver meu corpo com uma bala na cabeça. Ela não pode me ver assim.
”
Tinha saído apenas para encontrar
os amigos em um bar no estacionamento do supermercado. Era sábado à tarde e
ficar sozinho em casa, longe da cidade natal, não era nada fácil. Largou
família, amigos, namorada... A distância derrubou o que já estava cambaleando.
Sonhava com ela quase todos os dias. Acordou chorando algumas vezes, sentiu
raiva de si outras.
À primeira vista poderia não
parecer, mas ele estava disposto a encarar quem o olhasse. Arrumaria confusão
com qualquer pessoa. Este sentimento inconsciente tomava conta dele aos poucos.
Não sabia brigar. Então porque o faria? Para apanhar. Seria uma forma de
punir-se, de limpar a sujeira em si, de esquecer.
Ver a morte de frente foi
diferente.
Tudo começou por causa de uma vaga
no estacionamento.
- Qual o problema de parar aqui?
- Essa vaga é de idoso.
- Não tinha visto.
- Então tira o carro.
- Quem é você para me mandar?
- Não te interessa. Tira, seu
merda.
- Agora é que eu não tiro. Você é
policial? Vai me prender?
O homem sacou a arma e foi na
direção de Márcio. Coronhada na nuca, cabeça no asfalto, hálito de álcool
invadindo as narinas. Conseguiu se levantar e ainda ameaçado pela arma entrou
no carro e acelerou. Os amigos que o esperavam não viram a cena.
Passou por uma blitz policial, mas
não teve coragem de denunciar o acontecido. Poderia ser pior. Parou o carro
alguns metros adiante e desabou em convulsões de pranto. Ver a morte é assim?
Não foi fácil colocar a cabeça no
travesseiro à noite. Não vinha sendo, pelos menos. A mente girava e vasculhava
cada passo que seria dado a partir dali, como se um novo ciclo fosse iniciar e
mais desafiador do que os anteriores. Poderia ser.
O sentimento era de autodestruição.
Recebera um “convite” para deixar o trabalho. A rua seria seu próximo posto. Metade
de suas despesas eram pagas com a ajuda dos pais. Estava solteiro não por
vontade própria. O aluguel estava atrasado há um mês. Tinha 32 anos e a
sensação de que a adolescência ainda fazia parte dele. Alguns vídeos pornôs
recebidos em grupos no whatsapp eram seus companheiros nas noites vazias.
Sentia que precisava fazer alguma coisa, mas o que? Não encontrava algo que lhe
daria força.
Existia fundo do poço?
Ele pensava que poderia não estar
mais ali, que aquilo poderia não ser realidade. Não ligou para a mãe. Seria
difícil disfarçar o que sentia. Viriam as perguntas que ele não queria
responder. Por que não voltava para a casa
dos pais?
O preto velho da Casa de Mãe Rita
já tinha avisado. Prepara pra dar passo
atrás. Se ficar parado é pra se acabar. Sua missão é grande, fio. Mas fio é
corajoso. Não vai desistir.
Falou para ele tomar três banhos de
cachoeira para mãe Oxum ajudar a clarear as ideias e pedir proteção a pai Xangô.
O
que seria dar um passo atrás? Como poderia descer mais?
Ligou para Amanda. A amiga sempre
vinha quando ele chamava. Era um pacto sem contrato. Sexo sem compromisso.
Conversa franca. Verdade falada na cara sem medo de repreensão. Julgava ser a
relação perfeita. Por que não me apaixono
por ela? Por que não ficamos juntos de vez?
Vai
estragar tudo, você sabe. Deixa como está.
Ela foi embora sem saber que Márcio
quase tinha tomado um tiro na fronte. Não sabia também que aquela seria a
última vez deles.
Resolveu partir na manhã seguinte
de volta para o Rio de Janeiro. Seria voltar atrás? Quem poderia afirmar? As
cicatrizes necessárias para que lembrasse das dores, das perdas, dos
aprendizados, estavam expostas. Precisava lembrar. Era sua forma de crescer.
Na porta do apartamento, antes
mesmo de colocar as chaves na porta, deixou as malas no chão e pôs-se a ouvir
os sons que vinham de dentro. A televisão ligada em algum jogo de futebol
indicava que o pai estaria ali, provavelmente dormindo. O estalar da gordura
ressoava vindo da cozinha. O cheiro ultrapassava a porta e seguia pelo corredor
do 5° andar. Era a mãe. A voz alta e rouca da irmã saía da mesma direção.
Conversavam, mas ele não conseguiu identificar o assunto.
Abriu a porta.
- Mais um prato na mesa, por favor.
Foram gritos, foi o choro da
saudade que se misturava à incredulidade, foi o pai acordando assustado. Aquilo
não poderia ser voltar atrás.
Não contaria os eventos dos últimos
dias. O silêncio é também uma decisão. Não dizer, diz muito. A ausência de
palavras é repleta de significados.
Era recomeço. Era sua primeira
prova de coragem. Para onde iria?
A história era o próprio caminho.