“Pra quê voltar se já sei o que
não vou encontrar?” Abrir a porta do apartamento ao voltar do trabalho tinha
sido seu pesadelo durante todo o dia. Ela não estaria mais lá. A despedida
tinha acontecido naquela manhã, antes que ele saísse. “Nem teve a compaixão de
partir quando eu não estivesse”, pensou. Melhor assim. Talvez pensasse que tudo
continuaria igual, pois não teria havido despedida. O corte, a ruptura crua e
clara era dolorosa, porém traria o alento da verdade. Encarar a realidade é
melhor do que os prolongamentos angustiantes da ilusão.
Marcelo não era o melhor homem
com quem Luísa havia estado. Não se assemelhava nem a Alberto em seus melhores
tempos, mas tinha no olhar um desejo por ela, que a fazia sentir quando aos 20
anos de idade, passava de propósito pelos corredores da faculdade em seus
vestidos curtos de tecido leve e solto sobre a pele morena e sentia cada olhar
masculino a desviar-se de qualquer tarefa para apreciá-la. Aqueles olhares apagavam
a adolescência sem graça, quando ainda magra, só tinha a atenção de um homem
que quisesse se aproximar de suas amigas. O amante agora a fazia sentir o
eriçar de pêlos na nuca da juventude. Sua feminilidade reacendida pelo retorno
da auto-apreciação.
Alberto era solar, mas só via
noite a sua frente. Lembrava do pedido de namoro. Pedido que ela recusou, mas
que dois dias depois aceitou. Pensava no primeiro “eu te amo”, mesmo que
hesitante, porém sincero, dito enquanto faziam sexo bêbados. A declaração teve
que ser feita novamente no dia seguinte para que ela aceitasse o efeito. Não
queria que parecesse tudo desculpa da bebida. Disse “eu te amo” a ele também e
sentiu o coração acelerado enquanto o abraçava com a cabeça recostada sobre o
peito dele.
Luísa sentia uma mão tocar sua
perna e pressionar levemente a coxa direita, um arrepio que vinha da base da
coluna à nuca. De olhos fechados se permitia sentir aquilo sem quebrar qualquer
encanto. As buzinas a estourar seus tímpanos a fizeram voltar. Estava dentro do
carro. Sinal verde e ela a relembrar a tarde anterior.
De tão só se perdia de si. Como
um cego novato a tatear o mundo no escuro em busca de algo que reconheça. Sem
rumo, reaprendendo a caminhar sozinho. Vivia com ela e para ela. Esquecera como
tinha sido antes. Existia antes? Acomodou-se na tranqüilidade do matrimônio.
Emprego estável, casa bonita e quitada, carro novo, mulher que amava. Tudo
corria sem os sobressaltos da juventude. Alberto gozava a aposentadoria das
aventuras aos 43 anos. Agora se perguntava onde o barco tinha mudado de
percurso. Onde?
Ele saiu do banheiro e veio se
deitar. Luísa lia um livro de Martha Medeiros que ganhara da irmã. Ele se
cobriu com o lençol, deu um beijo em sua cabeça e virou o corpo, como de
costume, para a mesa de cabeceira. Ela veio por suas costas, passou a mão ainda
gelada pelo ar-condicionado nas costas dele e se aproximou, como que para
aquecer-se. Era seu homem. Estivera sempre ali e ela sabia que poderia contar
sempre com ele. Alberto virou e delicadamente começou a beijar a esposa. Há
duas semanas não faziam amor. O cansaço, um programa interessante na TV, a
vontade de ler um livro, uma indisposição, um desencontro, a TPM, a
menstruação. Motivos de um lado e de outro que de escasso, ao longo dos anos,
viraram rotina. Nada que percebessem de imediato. Eram as circunstâncias. Algo
no meio do sexo a fez estalar os dedos mentalmente. Como uma chave elétrica a
desligar toda a energia da casa. Algo apagou e ela não sabia onde poderia
reparar o defeito. Foram até o final sem que ele visse alguma mudança.
Recostaram-se para dormir e ela permaneceu insone. Foram 5 meses até que ela
aceitasse e tomasse alguma atitude, mesmo que naquela tranqüila noite, todas as
luzes dentro dela já estivessem queimadas.
Ele alimentou por anos a
esperança de ser pai. Queria levar o filho aos jogos do Fluminense, queria
ensiná-lo a andar de bicicleta, ajudá-lo no dever da escola, contar histórias
antes de dormir. Não aconteceu. Se havia algum problema com ele ou ela, não
quiseram saber. Jogar a culpa em um dos dois poderia ser o início de uma
decepção velada, porém persistente.
Foi ao ginecologista sem avisar o
marido. Estava atrasada há duas semanas. Não quis contar antes para não criar
expectativas. Dentro de si ela tinha certeza que residia o maior amor de sua
vida. Grávida aos 39 anos. Pelos cálculos, Felipe nasceria em novembro, bem
perto do aniversário da avó paterna. Sucumbiu com apenas 2 meses de gestação.
Alberto nunca mais foi o mesmo.
Ela não o alcançava mais. A perda
tinha sido muito maior para ela, claro, mas sofreu em silêncio. Trabalhou mais,
estudou espanhol, viajou para todos os congressos e simpósios que podia. Via o
marido se afundar no próprio abismo, sem gosto, viço, descrente de tudo.
Demorou a voltar ao normal.
Era domingo e Alberto não estava
na cama. Luísa estranhou a ausência dele. Levantou e seguiu os ruídos que
vinham da cozinha. Ele preparava o café-da-manhã e sorriu abertamente ao ver a
mulher ainda com os olhos inchados e a boca seca. O dia nublado daquele outono
frio em Porto Alegre era iluminado por ele, que acordara de um pesadelo de 11
meses. Foi assim de um dia para o outro. Reacendeu.
Luísa já não tinha mais as portas
abertas. Existia amor nela, no entanto nada que o permitisse entrar novamente.
Marcelo surgiu meio que por acaso. Malhavam na mesma academia. Trabalhavam
perto. O encontro após o expediente era natural. Da sala de musculação para o
motel, esse foi o caminho. Ela começou achando que seria apenas uma aventura
para reviver um pouco do prazer próprio, da auto-estima. Se acostumou com as
mentiras e passou a ser fria. Perceber-se indiferente à quase tudo a fez entrar
no apartamento na noite de 18 de julho e dizer que partiria no dia seguinte. O
marido, talvez em estado de choque, não reagiu. Ela ansiava por arroubos de
desespero, uma briga antológica e uma reconciliação avassaladora. Teve o olhar
perdido de um incrédulo.
Viram-se 3 vezes mais apenas.
Todas referentes ao divórcio. Alberto mudou-se para o Espírito Santo afim de
nunca mais retornar à Porto Alegre. Luísa ficou mais 3 meses com Marcelo e só
aos 50 conheceu o homem que a acompanharia até a morte. Aos 72 anos uma prima
comentou quase sem querer que soubera da morte de Alberto. Ele voltara a viver
em Porto Alegre, na casa que era de sua família, havia 2 anos. O semblante de
Luísa mudou profundamente. Não soube descrever o que sentira.
Sentiu saudade do café-da-manhã
aos domingos.